22.6.10

 

O Jacobinismo Recuperado

Já muito se disse de José Saramago, mas é sempre possível acrescentar alguma coisa.

Desde a passada 6ª feira, dia 18 de Junho de 2010, até ontem, domingo, quando o corpo de Saramago entrou no crematório do Cemitério do Alto de S. João, assistimos a uma verdadeira orgia de jacobinismo, em que a aliança esquerdista-trotsquista-estalinista-socratista funcionou em pleno.

Desde o primeiro minuto da notícia da morte de Saramago que começou a desenhar-se esta espúria coligação, norteada pelo cerco político ao Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva.

Qualquer um poderia ter lembrado a esta gente assanhada que por várias ocasiões Saramago havia proclamado, com desbragada altivez, que onde ele, Cavaco Silva, estivesse, não estaria ele, Saramago, fosse aquele Presidente da República, como de facto veio a ser.

Saramago foi repetidamente grosseiro e afrontoso com Cavaco Silva, Primeiro-Ministro e depois Presidente da República, digo-o assim, com alguma mágoa sentida, porque não gosto de falar mal dos mortos, seguindo aqui uma velha máxima latina que manda que destes não se fale senão bem.

De resto, não preciso de pertencer àquela coligação espúria para reconhecer a importância literária e cultural de Saramago.

Ficará certamente como um dos grandes escritores de língua portuguesa do século XX, que continuou a escrever ao entrar no século XXI, já com oitenta anos e a publicar com regularidade espantosa de quase um livro por ano, até 2009, quando cumpriu o seu octogésimo sétimo aniversário.

Prosador de largo fôlego, senhor de uma técnica narrativa invulgar, sustentada por fértil imaginação, que, com mais de oitenta anos, fazia inveja a muitos jovens escritores.

Mas se isto parece consensual, convém que se vejam também as outras faces do poliedro Saramago.

A atribuição do Prémio Nobel, em 1998, pela Academia Sueca, ter-lhe-á dado a sensação de que não só lhe reconheciam a arte literária, como lhe legitimavam igualmente a ideologia funesta, derrotada pela História, sem honra nem glória, no final dos anos 80 do século XX.

De então para cá, vimos um José Saramago cada vez mais empertigado, azedo com todos os que não o reverenciavam, mas teimavam em recordar-lhe o passado jacobino, cúmplice de regimes que amordaçaram a liberdade, ao mesmo tempo que negavam à população os níveis de desafogo e de conforto típicos das democracias capitalistas ocidentais.

Saramago exerceu com devotado sectarismo o cargo de Director-Adjunto do Diário da Notícias, no período revolucionário de 1974-75, de onde só saiu, quando a aventura esquerdista-comunista finalmente terminou no inevitável 25 de Novembro, sem o qual o país continuaria a sua marcha para o caos, que o teria arrastado para uma mais que provável guerra civil, não fosse a virtuosa estratégia de contenção dos militares moderados, com Eanes à cabeça.

Depois de anos de ressaca, Saramago regressou à vida, com o seu «Levantado do Chão» com que, em 1980, ganhou o Prémio Cidade de Lisboa, seguido do «Memorial do Convento», em 1982, e de «O Ano da Morte de Ricardo Reis», em 1984, abrindo caminho a uma década de franco sucesso literário, já depois dos 60 anos de idade.

Com o episódio infeliz da desqualificação do seu «Evangelho» da lista de livros candidatos a um Prémio europeu, viria a tirar proveitosos trunfos, pela rábula que habilmente soube montar de escritor maldito, perseguido pelo Poder cavaquista, que muitos ingénuos e outros matreiros ajudaram também a encenar.

Quando, após a queda estrondosa do Comunismo, lhe esperávamos uma meditação redentora do grande embuste intelectual do século XX, eis que nos surge armado de inusitada virulência, a explorar contradições do Cristianismo e da Bíblia, procurando retomar uma típica questão dos finais do século XIX, quando alguns intelectuais, sobretudo em França, como E. Renan, empreendiam a sua investigação racionalista dos fundamentos históricos e doutrinais do Cristianismo.

Nunca lhe ocorreu reflectir sobre as causas do fracasso do Comunismo, que, para lograr algumas realizações no campo sócio-cultural, houve de engendrar um regime sumamente burocrático e repressivo, que esmagava qualquer veleidade de exercício de cidadania.

Em contrapartida, inventou uma perseguição da parte da Igreja e dos Governos de Cavaco Silva, que, na verdade, nunca existiu, apesar da desastrada actuação de um seu Sub-Secretário de Estado da Cultura, de nome Sousa Lara, que dela se deve ter mil vezes arrependido, quanto mais não seja, pelas consequências políticas calamitosas que se lhe seguiram.

E assim foi que, progressivamente, todo o jacobinismo se lhe colou, como lapa em rocha propícia, como vimos com manifesta exuberância no último fim-de-semana.

Com ódio exacerbado a tudo o que pareça contradizer-lhe a cartilha, este moderno jacobinismo está hoje bem entrincheirado nos chamados órgãos da Comunicação Social, de onde pretende controlar mentalidades e opiniões.

Surpreende, de facto, este recrudescimento de sectarismo político-cultural, num tempo que supúnhamos de maior tolerância e abertura de espírito, demonstrando, a quem tivesse dúvidas, que a Política continua a ser necessária para orientar opções fundamentais, não bastando para tal o mero manuseio de palavreado pseudo-científico de cariz económico-financeiro.

Os tempos próximos certamente o confirmarão.
AV_Lisboa, 21 de Junho de 2010

6.6.10

 

Retorno para Breve

Aos leitores deste espaço reflexivo autónomo e solidário, informo que estarei de regresso, em breve, para contribuir para a nossa comum libertação intelectual dos modernos mas formidavelmente nocivos preconceitos ideológicos que nos tolhem e obscurecem a consciência, libertação sem a qual nenhuma atitude ou acção resultarão válidas, no futuro incerto e duro que nos espera e, hoje mais do que nunca, nos ameaça drasticamente.

AV_Lisboa, 06 de Junho de 2010

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